domingo, 31 de janeiro de 2010

"grandes jogos contra as velhas freguesias, parte 3", por andré giusti

A década de 80 foi certamente a era dourada do Flamengo. Mas foi também uma das épocas mais vitoriosas do Fluminense, nosso segundo maior rival (sim, o Vasco é o principal). Conquistaram um brasileiro e um tri-campeonato carioca. Dois dos títulos do tri foram em cima do Flamengo. O último, o de 1985, foi naquela final contra o Bangu, em que o Duílio puxou escandalosamente a camisa do Cláudio Adão e o José Roberto Wright não deu o pênalti. Mas podemos dizer que também perdemos o título para eles. Pois foi o ano daquele triangular em que jogaram Flamengo, Fluminense e Bangu.
Pois bem. Naquele verão de 1986 eu estava engasgado com o Fluminense. E isso já tinha três anos.
Era um domingo de fevereiro, uma semana depois do carnaval. O Rio derretia de calor, e a temperatura no Maraca, quando ventava, era de 40º. Do outro lado, eles cantavam aquela musiquinha de péssimas lembranças: “Recordar é viver, Assis acabou com vocês”.
Com uns 15 minutos de jogo, engoliram a cantoria. Numa bola cruzada rasteiro na área, Zicão guardou: 1 x 0. Só que pouco depois eles empataram, e aí a marra veio maior ainda. E pra cima do Galinho. Toda vez que ele pegava na bola, a torcida do Fluminense gritava “Bichado! Bichado!”. É bom lembrar que o Zico fazia das tripas coração para tentar jogar a Copa do México, uns seis meses depois da “tentativa de homicídio” do Márcio Nunes naquele jogo contra o Bangu.
Mas se eles soubessem, não teriam provocado. Foi uma das maiores partidas do Zico que vi na vida. Ele marcou outros dois: um de pênalti e um de falta, em uma cobrança primorosa, da quina da área, em que pegou o Paulo Victor no contra-pé. Acho que foi depois dessa cobrança que vi o Zico, pela única vez, perder a linha com uma torcida adversária. Ele correu até a torcida do Fluminense, mostrou a camisa e gritou que bichado era aquela boa e gentil senhora.
Flamengo 4 x 1, e começava ali a decadência do Fluminense. Foram dez anos sem títulos, interrompidos apenas pela fatalidade do gol de barriga do Renato em 95, mas que culminaram com a queda para a terceirona.
Esse foi um dos meus dois Fla-Flu’s inesquecíveis.
O outro, por acaso, ocorreu cerca de dois meses antes, no triangular decisivo de 85. Meio de semana, Maraca lotado. Fui com um camaradinha meu, vascaíno, mas gente boa, doidinho pra secar o Mengão.
Com uns 20 minutos de jogo, Washington: 1 x 0 pra eles e o diabo do corinho: “Assis acabou com vocês”.
A raiva que sentíamos do Vasco nos anos Eurico Miranda era a raiva que eu sentia daquele Fluminense, realmente um grande time, extremamente competente, embora nunca tenha dado espetáculo como o Flamengo de 81.
Foi um ano difícil pro Flamengo, aquele 1985. Quebraram o Zico, o Júnior foi vendido, pelo que me lembro o Mozer também, o Adílio foi parar nem sei onde e o Raul não jogava mais. Tínhamos ainda o Andrade e o Leandro, e a nossa maior arma, sempre: a nação rubro-negra.
Era como se a torcida houvesse dito “chega, não vamos perder pra esses caras hoje”. Com o time atrás no placar, a massa ficou de pé praticamente todo o jogo, gritando, incentivando. Eles, mesmo ganhando, ficaram lá do outro lado, calados e acuados, como se assistissem petrificados a uma aula de como torcer em um estádio.
O time respondeu em campo. Massacrou o Fluminense, reverteu, na base da raça, a superioridade técnica do adversário. Jamais esquecerei do Cantarelle (lembram dele?) indo no meio do campo bater lateral.
É claro que os deuses do futebol não deixariam sem prêmio tanta entrega e adoração. Aos 46 do segundo tempo, uma bola rebatida pela defesa sobra na intermediária para o Leandro, que pega um dos chutes mais perfeitos e violentos a que testemunhei em minha vida de torcedor. Foi como se, numa seqüência bem hollywoodiana, o Maraca houvesse congelado pelos segundos em que durou a trajetória da bola até que ela se chocasse com o travessão, batesse na nuca do Paulo Victor e caísse dentro do gol, sem sequer tocar o barbante tricolor.
Um amigo meu torcedor do Fluminense, que estava no jogo, disse que quando a bola entrou teve a impressão de que o estádio viria abaixo. Alucinado, me abracei com um vendedor de mate, que tendo jogado a mercadoria para o alto, também me abraçava chorando aos berros: “Pôrra, louro! O Flamengo vai me matar!”, na mais pura demonstração de amor de um homem simples por um clube.
Terminou 1 x 1, não fomos campeões, mas toda as vezes que ouço o trecho da letra que diz “raça, amor e paixão” lembro daquela noite perdida na década de 80.

andré giusti é escritor e jornalista
http://www.andregiusti.com.br/blog/

clube de regatas do flamengo: campeão estadual de 1986